Nesta semana, o streamer Casimiro Miguel bateu o recorde mundial com uma transmissão de futebol no YouTube, chegando a 4,8 milhões de visualizações em seu canal CazéTV. Os números impressionam, mas uma análise mais detalhada dos dados mostra que nem tudo é o que parece.
Casimiro é ótimo e as transmissões que faz são perfeitas para seu público. Mas a questão não está no conteúdo do streamer, o problema é a conta e as expectativas irreais da Fifa. Assim como a Globo tem prejuízo com a Copa, a conta também não fecharia no canal do Casimiro se a Fifa não tivesse dado uma forcinha.
Obviamente, essa forcinha da Fifa no fundo é uma tentativa da organização de sair do beco sem saída em que se colocou. Para entender essa questão é preciso voltar alguns anos no tempo.
Quando a Globo assinou o contrato para a transmissão da Copa do Catar, o cenário brasileiro era muito diferente. Ainda era o governo Lula, a The Economist publicava o Cristo Redentor em sua capa decolando para mostrar o potencial da economia brasileira e o país parecia caminhar para se tornar uma potência mundial.
A Globo apostava alto no Brasil e no futebol. Tão alto que fechou o segundo contrato de transmissão mais caro do mundo com a Fifa, pagando cerca de US$ 90 milhões por ano, o equivalente a cerca de R$ 468 milhões pela cotação atual, ou quase R$ 1,9 bilhão a cada 4 anos.
Brasil tem segunda Copa mais cara do mundo.
Segundo o relatório fechado Rights Tracker, da SportBusiness, apenas os direitos de transmissão dos Estados Unidos foram mais caros, custando US$ 575 milhões (R$ 3 bi). Países com poder aquisitivo mais alto que o Brasil pagaram menos. A Alemanha gastou US$ 235 milhões (R$ 1,22 bi) e Japão US$ 225 milhões (R$ 1,17 bi). Mesmo a China, com uma imensa população, investiu apenas US$ 203 milhões (R$ 1,05 bi). Na Argentina, o valor pago à Fifa não passou de US$ 20 milhões (R$ 104 mi).
Para piorar, os últimos anos causaram uma revolução no mercado de mídia. O streaming explodiu duas vezes, primeiro ao atrair o público da TV, e depois quando se descobriu que a conta não fechava e era preciso cortar custos drasticamente.
A Globo, assim como seus pares, se viu afetada por um cenário econômico negativo e um modelo de negócios cada vez mais desafiador, com a receita da TV aberta e a cabo despencando. A solução foi renegociar contratos em novas bases e abrir mão dos acordos em que a conta não fechasse.
Na outra ponta estava a Fifa e demais federações. No início imaginaram que era "conversa de comprador". Afinal, quem imaginaria a Globo sem grandes competições de futebol, o filé da mídia brasileira?
Para surpresa geral, a Globo abriu mão da Libertadores e dos campeonatos regionais de futebol. De certa forma, a emissora carioca atirou no que viu e acertou no que não viu. Os campeonatos saíram da emissora, mas os resultados foram inferiores nos concorrentes. Para os times foi um problema. Os patrocinadores querem exposição de marca e pagam por isso. Os clubes também precisam atrair torcedores.
Ou seja, a Globo saiu fortalecida da disputa. Tanto que os campeonatos estão gradualmente retornando à Globo, mas com valores muito mais baixos do que as cifras do passado.
Fifa cede aos 45 do segundo tempo.
Em 2020, diante da pandemia de Covid, a Globo forçou uma renegociação com a Fifa e a disputa chegou a ir para a Justiça, mas acabou sendo resolvida por meio de um novo acordo. Os direitos de transmissão em streaming (na internet) da Copa foram devolvidos à Fifa nesta renegociação de contrato com a Globo. Plataformas como Youtube, Facebook, TikTok, Kwai, Instagram, entre outros também ficaram disponíveis.
Recentemente, a Globo renovou com a Fifa até 2026, com um adendo. Segundo o site Poder360, o novo contrato não prevê mais exclusividade nas transmissões em TV aberta e por assinatura.
Quem passou a vender a Copa do Mundo no Brasil foi a LiveMode. A empresa habilmente tem conseguido, dentro do possível, driblar a Globo e encontrar novas fontes de receitas para as transmissões esportivas. A LiveMode levou o Campeonato Paulista para o streaming, por exemplo. Os resultados são avaliados como positivos pela Federação Paulista de Futebol.
Seja como for, Fifa e LiveMode precisam equilibrar visibilidade de marca e receita. A Globo, além de ter a mais robusta equipe comercial do país, também tem a maior e mais fiel audiência no futebol. Como ouvi de um executivo da emissora há alguns meses: "se algo perde dinheiro na Globo, como ganharia em outro lugar?".
A resposta está em um modelo comercial diferente. A Globo compra os direitos e vende as cotas de patrocínio. A Band para tirar a F-1 da Globo topou dividir a receita com a Liberty Media, dona dos direitos. O SBT também topou dividir parte da receita de futebol com os donos dos direitos.
No caso de Casimiro, a Fifa aceitou fazer um teste e vendeu os direitos para a LiveMode faltando apenas dois meses para o início da Copa. O valor foi bem distante do que a Fifa gostaria. Em 2026 haverá um aumento dos valores dos direitos e também dos valores cobrados dos anunciantes.
No mercado o comentário é que existirá ainda uma divisão de receitas da LiveMode com a Fifa a partir dos resultados de Casimiro, mas pelo baixo tempo para realizar as vendas, apenas dois meses, o número poderia ser melhor.
A realidade é que a Fifa não tinha muitas alternativas. Desde 2020 ela tentou vender os direitos digitais sem sucesso. Interesse existia, o problema era o valor pedido. Disney, Warner Bros. Discovery, YouTube,TikTok e todos os grandes players foram abordados, mas não fecharam acordo.
Questionada pela coluna, por meio de sua assessoria de imprensa a LiveMode disse que "Os modelos de negócios das iniciativas inovadoras vão se desenvolvendo com o tempo. É tudo muito novo. Então é muito difícil prever o futuro e como serão os custos e receitas ao longo do tempo". Ainda segundo a empresa, teste talvez não seja a a definição correta. "É uma inovação, sem dúvida. E para inovar muitas vezes é necessário a agilidade que tivemos nesta situação".
Sobre o confronto com a TV a LiveMode diz que "são modelos complementares. A TV tem seu público, tem muita gente que vai seguir preferindo ver na TV.
As transmissões da CazéTV vão buscar um outro público, que está mais nas plataformas digitais como o Youtube e a Twitch. Achamos que a tendência não é das transmissões por influenciadores e sim do consumo de conteúdo nas plataformas digitais. O negócio tradicional de TV segue tendo muito espaço, não achamos que as transmissões de influenciadores que mudem isto".
Casimiro ajudou a Globo.
A última cartada da Fifa foi a aposta em Casimiro. O YouTube tinha interesse na Copa, mas havia dúvidas de como o evento iria performar em sua plataforma. O sucesso de Casimiro poderia dar essa resposta. Dependendo do resultado, o YouTube seria um competidor viável nas futuras negociações em digital.
As big techs são notórias pela fartura de recursos e não falta caixa para comprarem o que quiserem (a compra de conteúdo ainda não é limitada por órgãos reguladores, diferentemente da compra de empresas concorrentes). Nos Estados Unidos, o Google está disputando com a Apple o Sunday Ticket da NFL. A expectativa é que o contrato que atualmente custa US$ 1,5 bilhão (cerca de R$ 7,8 bilhões pela cotação atual) por ano para a DirectTV (e que perde US$ 500 milhões ano com o negócio) passe a custar entre US$ 2,5 bilhões e US$ 3 bilhões por ano (entre R$ 13 bilhões e R$ 15,6 bilhões).
O valor ajuda a explicar por que somente Google e Apple seguem na disputa. A questão é que apesar de ricas, as big techs ainda não tem o mesmo alcance da TV. A Amazon transmite os jogos da NFL às quintas-feiras, mas a audiência estaria abaixo da expectativa. Por outro lado, os jogos desta temporada estão batendo recorde de audiência na TV.
Por que Casimiro não é visto como uma ameaça pela Globo e pode até ajudar a emissora? Porque mesmo com o recorde, Casimiro estaria apenas reforçando a força da TV e a superioridade da Globo. Resumidamente, seria a prova de que os direitos da Fifa valem menos do que a entidade acredita.
Dentro da Globo a avaliação é que Casimiro, ou qualquer influenciador, só incomodariam se chegassem a mais de 20 milhões a 25 milhões de views. Os dois primeiros jogos do Brasil na TV aberta alcançaram mais de 96,3 milhões de pessoas. O alcance médio por partida da Copa na Tv aberta foi de 34,9 milhões de pessoas (no online uma pessoa pode gerar diversos views, na TV, não). Os números acima não consideram TV a cabo e plataformas digitais da Globo, o que elevaria consideravelmente o alcance.
Procurada, a comunicação da Globo destacou a boa performance da audiência de suas plataformas com as transmissões da Copa.
YouTube é pequeno perto do BBB
Em recente entrevista à Forbes, Patrícia Muratori, head do YouTube no Brasil, comentou sobre os resultados do Campeonato Paulista. "Esse ano, trouxemos o Paulistão para o YouTube. Foram audiências massivas, com mais de 81 milhões de views em todos os jogos - sendo 73 milhões de visualizações ao vivo, num jeito de transmitir que agradou muito o público".
Para efeito de comparação, o último BBB teve mais de 1,7 bilhão de visualizações no Globoplay (segundo dados internos da Globo). Mesmo a questão da medição joga a favor da TV. Uma visualização não é a mesma coisa que um espectador, como no caso da TV. Além disso, muitas vezes o celular funciona como segunda tela, já que a pessoa está vendo o jogo na TV, o que beneficia os anunciantes presentes na TV.
Além disso, a medição da audiência de TV é auditada e acompanhada há décadas. Por enquanto, os números das plataformas digitais são computados e divulgados pelas próprias plataformas.
A avaliação dentro da Globo é que a atração de Tiago Leifert na Copa é um sucesso e está cumprindo seu papel de ser uma alternativa à transmissão tradicional. Mas quanto isso representa em visualizações ou tempo de permanência é uma questão aberta, já que o Globoplay não divulga os números. E mesmo que divulgasse, a informação não seria auditada por terceiros como acontece na TV.
O YouTube nunca escondeu seu desejo de concorrer com a TV, o problema é que são modelos de negócio bem diferentes. Mesmo nos EUA, onde tenta comprar o Sunday Ticket, o plano do Google é transmitir as partidas no YouTube TV, a TV a cabo do Google custa US$ 64,99 por mês.
O modelo de transmissão de esportes de primeira linha de maneira gratuita no streaming, por enquanto, não existe. NFL, NBA, ligas europeias, ninguém encontrou uma maneira sustentável de fazer isso no digital. E a razão é simples, a conta não fecha. O delay de até 1 minuto nas transmissões digitais seria outro ponto fraco do streaming.
Por que Casimiro é uma dor de cabeça para a Fifa?
As transmissões acontecem no YouYube, a maior plataforma de streaming do mundo. Traz como novidade Casimiro, o maior e mais interessante streamer do mundo apresentando as partidas. A LiveMode, potência comercial no Brasil, vendeu as transmissões. É o time perfeito, e mesmo assim, o valor que a Fifa irá receber é dezenas de milhões de dólares inferior ao que recebia da Globo.
Obviamente, para o YouTube ou qualquer outro player, o futebol é uma atração altamente desejável. A questão é fazer isso sem perder dinheiro, o que depende do quanto a Fifa cobra pelos direitos de transmissão. E tudo indica que será bem menos. Procurados, Fifa e Google não comentaram.
No futuro talvez tenhamos todos os jogos e atrações da TV no streaming. A Globo sabe disso, investe bilhões no Globoplay e trouxe Tiago Leifert liderando uma transmissão com foco no modelo digital.
"Não há dúvidas que o sucesso do Casimiro confirma que existe uma nova janela relevante, um novo formato de alto alcance, para distribuição de conteúdo esportivo e para investimento dos patrocinadores", diz Bruno Maia, especialista em inovação e novas tecnologias e sócio da Feel The Match. "Isso diminui a força das mídias antigas, mas não acaba com elas".
Bruno defende ainda que "as redes sociais, por maiores que tenham sido ou sejam, não chegaram a se confirmar como alternativas às TVs e já foram atropeladas pelas plataformas focadas em streaming. A distribuição customizada do streaming tem, por característica nativa, ser nichada. Pode ser um nicho grande, mas ainda assim será para diversos nichos. A TV ficará com consumidores menos exigentes, mais generalistas, que seguirão sendo bastante expressivos em quantidade de pessoas."
O futuro da TV é o digital e a fronteira entre apresentadores de TV, streamers e influenciadores deve ser cada vez menos clara, mas por enquanto a TV ainda é o meio mais efetivo para a Copa do Mundo. A Fifa e a LiveMode vão fazer o que puderem para maximizar o faturamento com a Copa, mas não podem diminuir a visibilidade da competição, para a sorte da Globo.
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